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Aerdna no Mundo?

A definição da palavra "mundo", não é restrita. A minha preferida, engloba os vàrios conjuntos de realidades concretas e imaginadas. Aqui veremos o mundo pela escrita de Aerdna.

Aerdna no Mundo?

A definição da palavra "mundo", não é restrita. A minha preferida, engloba os vàrios conjuntos de realidades concretas e imaginadas. Aqui veremos o mundo pela escrita de Aerdna.

A reler histórias velhas! (E de repente pareceram-me tão actuais !)

Na última viagem a Portugal, durante a visita a casa da minha avó encontrei numa prateleira da sala, uma colecção de livros infantis que me pertenceram quando era pequena. É uma dessas colecções de histórias, que eram vendidas porta a porta (estamos a falar dos anos 80), com encadernações de capa dura, excelente para ajudar os livros a resistir ao manuseio que os miúdos lhe dão. Talvez por isso, esta colecção resistiu tanto tempo, e apesar de eu ter “profanado” as belíssimas ilustrações da autoria de Carlos Alberto Santos com os meus rabiscos, alguns livros viajaram agora, comigo de volta à nossa nova casa, além-fronteiras. Trata-se da colecção “Histórias do Avozinho” da autoria de Raul Correia.

Avozinho.jpg

 

São livros com vários temas e histórias contadas de forma simples, com um vocabulário rico, e com a “lição de moral” presente e compreensível (ao estilo avozinho, como indica o nome da colecção). Apesar de serem histórias infantis com ilustrações lindas que eu adorava (e ainda adoro), não são contos da Disney. Nestas histórias, a dureza da vida e da morte estão presentes.

E como não sou apologista de pintar castelos no céu aos miúdos, para que depois não caiam com a cara ao chão quando descobrem que o Mundo não é um conto de fadas, acho que estas histórias podem ser uma boa introdução ao que é a vida, a moral, os valores, a morte, e etc…

 

Entre as histórias que lemos com o nosso filho antes de ir dormir, passaram a estar estes livros. Ontem, li um dos contos que se chama “O Senhor de Corinde”. Depois da leitura e da conversa sobre a história e o esclarecimento de alguns significados, o pequeno dormiu e eu fiquei a pensar.

 

Este conto remete-nos para um mundo datado em 978 (não me esqueci do “1”), foi escrito ou registado há mais de 30 anos e ainda é tão actual.

 

Este é o conto, de que falo:

 

“O senhor de Corinde firmou os pés nos estribos, baixou a viseira e ergueu ligeiramente a ponta da lança, sopesando-a num gesto maquinal. Era uma leva lança de torneio, de madeira polida, bonita e quase inofensiva. Quatro como aquela havia quebrado durante nesse dia, derrubando sempre o seu antagonista.

Era o último recontro das justas em honra da princesa de Guimavre, que ia partir com todo um séquito magnífico para desposar o duque de Aquitânia. O príncipe de Guimavre, pai da princesa, convidara todos os senhores das redondezas para aquele torneio em honra de sua filha, e o senhor de Corinde aceitara o convite por deferência para com o velho príncipe e para manter as relações de boa vizinhança. Não que aqueles simulacros de combate lhe dessem qualquer prazer, e nem sequer para mostrar a sua destreza de cavaleiro.

 

Agora o seu último adversário era o senhor de Torquaz, cujos domínios, constantemente alargados pelas suas incursões em terras da mourama, incluíam vales e florestas que se alongavam para o sul.

Soaram as trombetas dos arautos, a um gesto dos juízes do torneio, e os dois cavaleiros lançaram os seus cavalos a galope. Encontraram-se quase a meio do terreiro, ambos fortes e destros, ambos montando poderosos corcéis. Mas no momento do choque, tal como acontecera nas liças anteriores, o senhor de Corinde desviou ligeiramente a sua montada e, fazendo com que a ponta da lança do adversário deslizasse sobre a superfície polida do seu escudo, curvou-se e bateu em cheio com a lança no peito do senhor de Torquaz.

A lança quebrou-se, como as anteriores se tinham quebrado, mas o senhor de Torquaz caiu pesadamente no terreno, também como os outros haviam caído. A justa devia terminar ali – assim como acontecera com as outras – mas o senhor de Torquaz, chamando os seus escudeiros para que o ajudassem, levantou-se, arrancou o elmo da cabeça e, mostrando as feições crispadas pela raiva, empunhou a sua longa espada e bradou:

- Continuemos o combate a pé, senhor de Corinde! Essas são as regras das justas!

- Não destas, senhor de Torquaz… - replicou o cavaleiro de Corinde. – Ficou assente que a queda de um cavaleiro concluiria a liça.

-Recusais?

- Sem dúvida que sim. As espadas são armas de guerra, não de torneio, e não desejo a vossa morte… nem a minha, por tão mesquinha razão.

-Pela mesma razão que vos leva a não atacar os mouros, não é assim?

O senhor de Corinde desprendeu também o elmo e desmontou, mas não empunhou a espada. Por um instante a sua face morena tingiu-se de um leve rubor de cólera, mas no instante seguinte um sorriso de desprezo encurvou-lhe os lábios, antes de responder:

-Não ataco gente indefesa para me apropriar das suas terras, senhor. E não podeis dizer que o fazeis para espalhar a verdadeira fé entre os descrentes, porque os matais sem piedade quando não fogem a tempo. Além do que, por várias vezes e … por engano, ao que dizeis, tendes assaltado da mesma forma terras de cristãos. (Tão actual este discurso apesar de os protagonistas serem diferentes, não é?)

Os dois cavaleiros tinham falado em voz bastante alta, e entre a assistência erguia-se um murmúrio que nada tinha de lisonjeiro para o senhor de Torquaz, porque de todos eram conhecidas a sua crueldade e a sua ambição desmedida. (Todos sabem, todos calam.) Por culpa dele se haviam acirrado ódios naquela região fronteiriça, e alguns pegureiros das encostas das colinas do sul, a quem os mouros não molestavam, tinham trazido novas de que hostes numerosas se estavam a preparar para uma incursão que, mais dia menos dia, seria lançada contra as terras do norte, tendo como primeiro objectivo os feudos de Torquaz.

Ao ouvir as vozes que se levantavam contra ele, o cavaleiro vencido hesitou por momentos, até que, de cabeça baixa e remoendo ameaças, devolveu a espada à bainha e se afastou para a sua tenda, onde os escudeiros o esperavam…

 

Naqueles tempos de rude braveza, não existiam nações tal como as entendemos hoje, mas apenas domínios ou senhorios pertencentes a famílias que, pouco a pouco, à custa de astúcia, de coragem ou apenas de sorte, tinham construído o seu poderio e lançado as bases da sua riqueza, sobrepondo aos direitos dos mais fracos as suas ambições apoiadas num só direito, o da força. (Evoluímos um bocadinho neste aspecto, agora “o direito” é o do dinheiro.)

Tais senhores, com hostes de mercenários a quem o poder atraía, viviam em constantes lutas com que os seus domínios se alargavam. Por vezes essas lutas eram travadas contra os mouros que, por processos semelhantes, se haviam implantado largamente em muitas terras do Sul da Europa, sobretudo,na Península Ibérica e no que é hoje a França. Sob o pretexto de libertar as regiões ocupadas pelos crentes de Mafoma, e muitas vezes sem qualquer pretexto, a guerra era permanente e, nos campos assolados pelos homens de armas, os povos viviam no constante pavor de saques e da morte violenta. (Está a ocorrer o mesmo na actualidade!)

 

Estranhamente, o senhor de Corinde não compartilhava da ferocidade nem da ambição dos seus pares. Em volta dos seu castelo os camponeses viam respeitados os seus direitos, e muitas vezes as mesnadas do castelão os haviam defendido. (“Estranhamente”!?)

 

Não muito numerosos, mas extremamente aguerridos e dedicados, os homens de armas do senhor de Corinde haviam mantido a distância os mouros e os bandos armados ao serviço dos outros senhores da região. Não havia memória de terem desencadeado qualquer luta para conquista de novas terras, e se todavia estas se alargavam e enriqueciam era porque os habitantes das aldeias vizinhas preferiam acolher-se à sombra protectora do pendão de Corinde, não porque a isso fossem forçados pela violência ou pelo medo.

Nos domínios de Corinde ninguém era castigado sem julgamento e ninguém era esbulhado dos seus haveres. Ali, naquele pequeno recanto do mundo, reinava a paz que era possível nessa época.

 

Tal como fazia muitas vezes, acompanhado apenas por dois lebréus, o senhor de Corinde conduzia o seu cavalo pelas veredas da montanha. Era ao anoitecer… um anoitecer do ano de graça de 978, no mês de Março… O ar era ainda fresco e leve, e sob a loriga e o capacete o cavaleiro não tinha excessivo calor. Do cinto pendia-lhe um punhal de lâmina larga, boa arma para os lobos, a na mão direita empunhava uma ascuma, pequena lança de arremesso. Não levava outras armas e na sua mente não havia qualquer ideia de combate. (Mesmo de consciência tranquila, precisava de se munir de armamento! Assim exigia a rudeza da vizinhança. Não estamos sozinhos neste mundo, os outros existem e as suas acções interferem na nossa vida. Sabemos disso há séculos e ainda não olhamos o mundo como um todo. Quando vamos aprender?) Em baixo, no fundo do vale que se cavava à sua esquerda, um largo ribeiro corria, saltando de pedra em pedra. Aqui e além, nas quebradas, oscilavam as chamas vermelhas das fogueiras que os pegureiros acendiam ao cair da noite, para afugentar as feras. De quando em quando ouvia-se o ladrar de um cão, ao longe.

A certa altura, no relativo silêncio que o rodeava, o senhor de Corinde ouviu um súbito e forte clamor, logo seguido pelo clarão de um incêndio que num repente se ateara e alastrava. E um tropel de cavalos, juntamente com ecos de brados e de um confuso entrechocar de armas, começou a fazer-se ouvir à distância, no extremo do vale, parecendo aproximar-se.

 

Rapidamente, o senhor de Corinde avaliou a situação e compreendeu o que devia estar a acontecer. Para além da extremidade do vale, a sul, na crista da montanha, erguia-se o castelo de Torquaz, cujos domínios se alongavam por ambas as encostas. Era daí que vinha o clamor, embora o tropear dos cavalos ressoasse bastante mais perto. Na vertente que subia para o ponto onde ele se encontrava, mal armado e seguido apenas pelos seus dois lebréus, começavam a brilhar clarões vermelhos de archotes na noite que entretanto se fechara quase por completo.

O senhor de Corinde sabia que podia voltar ao seu castelo sem encontrar os mouros – pois decerto se tratava da incursão de que haviam dado notícia os pegureiros. Aí, mesmo que os bandos atacantes conseguissem lá chegar, a defesa seria quase fácil. Mas pela mente do castelão passou a visão das pequenas aldeias que ficavam no caminho e cujos habitantes seriam impiedosamente chacinados. E isso era igualmente verdade para as terras de Corinde como para as terras de Torquaz, cujos camponeses não tinham culpa das violências praticadas pelo castelão.

Num impulso, o senhor de Corinde agarrou a sua trompa de caça e um som forte, ao mesmo tempo agudo e rouco, ressoou e foi longamente repetido pelos ecos da montanha. Ele sabia que as atalaias do castelo o ouviriam, se ainda não tivessem ouvido o alarido feito pelos que combatiam no vale e na encosta, e que Roriz, o seu alferes e amigo, compreenderia o que tinha a fazer. Depois, empunhando na mão esquerda o punhal e na direita a ascuma, impeliu a montanha na direcção dos archotes que continuavam a subir a encosta.

Não tardou muito tempo antes que distinguisse, agora com perfeita clareza, o rápido bater de patas lançados a galope por um córrego próximo… e momentos depois avistou dois cavaleiros que surgiam na vereda. Pelas armas de um deles, e à claridade de uns quantos archotes que estavam mais próximos, reconheceu o senhor de Torquaz que fugia (Fogem sempre, e os outros que se amanhem com as consequências!), debruçado sobre o pescoço do corcel, parecendo ter dificuldades em não cair. No seu encalço vinha um mouro, montado num cavalo ricamente ajaezado, que brandia Cuma comprida cimitarra e era seguido a curta distância por três dos seus guerreiros, que também empunhavam armas e erguiam archotes fumegantes.

 

O senhor de Corinde impeliu a montada e interpôs-se entre o cavaleiro perseguido e os seus perseguidores. (São sempre os outros, os alheios a confusões que têm de vir a terreiro, salvar os que não sabem viver com o que têm!) Na sua mão direita, a lança de arremesso levantou-se, recuou e foi logo disparada com tremenda força.

 

Ferido em pleno peito, o chefe mouro cambaleou sobre o dorso do cavalo e caiu para a frente, tentando ainda agarrar-se às crinas do animal antes de rolar no chão. Rápido, o senhor de Corinde apoderara-se da cimitarra no mesmo instante em que o mouro a largara, e aproveitando o espanto dos outros três atacou-os com irresistível ímpeto. Dois deles caíram antes de pensarem sequer em defender-se, e o terceiro, que vinha mais atrás, apenas teve tempo para obrigar a montada a uma volta rápida e, largando o archote que o denunciava, galopar em sentido contrário àquele em que viera e desaparecer nas sombras da noite, gritando:

- Retirar! Retirar que morreu Al-Fehri! Retirar!

 

Sem um olhar para o chefe mouro que morrera antes de tombar do cavalo, o senhor de Corinde aproximou-se do cavaleiro de Torquaz, cuja montada parara pouco adiante. Por vales e quebradas ouviam-se agora os brados das hostes dos cristãos que acudiam… e o tropel dos cavalos dos mouros que debandavam. Arquejante, o senhor de Torquaz tentava erguer-se sobre a sela. Tinha a cara lívida, os olhos turvos; um grande golpe de cimitarra abrira-lhe a cabeça de onde corria sangue. Mas, ao reconhecer aquele que o salvara, teve ainda forças para dizer:

-A razão era vossa… senhor de Corinde… peço-vos perdão… (Peca por tardio este reconhecimento!)

 

Graças aos cuidados de um físico sabedor e cuidadoso, mestre Zaguary, o senhor de Torquaz conseguiu sobreviver ao terrível ferimento, mas não voltou a ser o mesmo homem. Tinham-se acabado para ele as guerras de conquista, e nos seus domínios passaram a reinar a justiça e a paz que até então tinham andado tão arredias.

 

O que não significou, infelizmente o fim das guerras… - Texto de Raul Correia, nas “Histórias do avozinho”.

 

A minha memória emotiva tem leves lembranças de que esta história me assustava. Assustava-me mas, eu lia-a.

Imagino que poderá assustar também o meu filho, e ele não tem consciência do estado em que se encontra o mundo. Quando falamos acerca da história, tentei focar a moral da história:

  • O arrependimento e correcção da forma de vida do senhor Torquaz.

 

Desta forma, espero que o meu filho com o tempo ganhe essa referência: que apesar de errarmos podemos e devemos corrigir-nos. Assim como dar a oportunidade a que os outros se corrijam. E que podemos viver com muito menos, do que aquilo que desejamos. Devemos lutar pelo necessário e talvez mais um pouco mais, mas quando chegamos ao limite, que é quando temos de ultrapassar os nossos valores para continuar a somar, temos de saber parar.

 

Aprender a parar é o cerne da questão! Tenho esperança de o ensinar a parar! O futuro o dirá!

 

Mas não esqueço que esta história termina com reticências, como se fosse impossível à humanidade estabelecer limites duradouros, como se nos fosse impossível viver sem fazermos guerras.

 

A história actual, mais uma vez parece que vai ser escrita a sangue. Espero estar rotundamente enganada. Guardo no “baú da esperança” o desejo, que seja agora que a Humanidade descobre que é possível, este Mundo redondo dar para todos, sem necessidade de guerrear territórios. Cabemos cá todos, basta que alguns deixem de querer tanto só para eles, e se distribua melhor o produto da Terra.

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