O GOVERNO DO BARCO...
O rei deu a honra a um comandante de dirigir os destinos do seu barco e dos 12 homens que o mantinham limpo e a navegar.
O comandante sentiu-se orgulhoso e assustado com tamanha responsabilidade. Perdeu toda uma noite a desenhar uma estratégia para dirigir tamanha empreitada. Pensava em como iria garantir que cada um cumprisse a sua função para que nada falhasse. Ele tinha de ser bem sucedido. Decidiu que o melhor era uma postura que inspirasse autoridade, por isso, nada de confianças.
Naquela manhã apresentou-se no barco de queixo erguido e semblante orgulhoso. Tinha passado tanto tempo na sombra a preparar-se entre livros e documentos e agora tinha chegado a hora de colocar tudo em acção para brilhar.
Foi recebido pelo encarregado dos aposentos. Um homem grande, com aspecto e roupas simples. O discurso também denunciava a ausência de berço e preparação académica. Perante este simples encarregado sentiu qualquer traço de intimidação que tinha temido sentir, esvair-se. Ao « bom dia » do encarregado, respondeu com uma ligeira inclinação de cabeça.
O encarregado não se deixou intimidar e disse-lhe que todos o esperavam no convés para se apresentarem. O comandante respondeu que não era preciso perderem tempo com isso e que voltassem todos imediatamente às suas tarefas. Algo confuso o encarregado cumpriu a ordem.
Em menos de um dia os burburinhos começaram a ganhar forma. Não a forma de quem comenta algo que desconhece, mas tem curiosidade em conhecer. A forma dos burburinhos era de especulação sobre quem seria o arrogante que lhes tinham enviado para os comandar.
Uns diziam « temos de fazer o nosso trabalho e ignorar », outros perguntavam-se quando é que ele começaria a causar problemas.
O barco começou a sua rotina e esta não agradava ao comandante. Quase nada do que se fazia era igual ao que tanto tinha estudado. E era a ele que tinham incumbido a honrosa tarefa de dirigir aquele barco. Começou o ciclo de ordens, que alteravam a habitual rotina de todos.
As pessoas a bordo estavam confusas, não entendiam porque é que tinham de fazer diferente aquilo que até esse momento tinha resultado. Resolveram interpelar o comandante para lhe colocar questões que os ajudassem a entender a mudança. O comandante respondeu que não queria perguntas, queria as tarefas executadas.
A revolta começou a desenvolver-se e somada à inexperiência de todos com as novas formas de fazer as coisas, levou ao aparecimento dos primerios desastres. Uns magoavam-se no curso das tarefas sem que o comandante, com medo que algum tipo de empatia fosse interpretada como fraqueza, desse sinais de afrouxar na forma de actuar. Outros esforçavam-se tanto que acabaram por adoecer.
Os doentes e magoados, acabavam por somar mais trabalho aos sobrecarregados marinheiros. O bom humor de outros tempos que ajudava a temperar as adversidades começou a rarear. Em pouco tempo, as vozes elevavam-se facilmente, os maus modos começavam a tomar conta de todos. As tarefas começaram a ser executadas mecânicamente sem nenhuma preocupação com a qualidade. O desastre era companhia constante.
O rei perguntava ao comandante como estavam a correr as coisas. O comandante orgulhoso dizia que o barco navegada sem problemas. Tudo era rigorosamente cumprido.
O tempo passava.
Alguns marinheiros tiveram de abandonar o barco porque estavam exaustos e doentes. Situação que sobrecarregava ainda mais os outros marinheiros, que usavam todo o seu talento e folêgo de vida para que o barco continuasse a navegar.
O convés começou a mostrar alguma ausência de cuidado, o comandante irado, exigia responsabilidades. Quem tinha deixado de cumprir as suas obrigações, perguntou um dia ao encarregado.
« Ninguém, senhor ! » respondeu.
« Como ? Não vê que isto não pode continuar assim ? » refilava o comandante.
« Senhor, os homens que foram embora não foram substituidos. Os que ficaram fazem o que podem. »
« Têm de fazer mais. » dita o comandante.
« Como ? »
« Eu sei. Aquele que não limpar o convés todas as manhãs, fica sem o dia de trabalho. »
« Mas senhor, eles fazem mais do que o contratado sem receber uma moeda mais. »
« Encarregado, o orçamento não permite aventuras e as coisas têm de ficar feitas. Tem outra sugestão ? »
« Contratar marinheiros para substituir os que sairam, seria um bom começo. »
« O que é que eu lhe acabo de dizer ? O orçamento não permite. Faça o que lhe digo. »
O pobre encarregado tentava cumprir as ordens pagando o preço da impopularidade junto dos antigos amigos e companheiros de viagem.
O comandante recebia louvores do rei, afinal ele tinha conseguido o milagre de fazer o barco navegar por muito menos moedas.
Enquanto, o comandante se movia de festa em festa a receber elogios, a revolta fazia o seu trabalho junto dos marinheiros.
A primeira baixa foi o encarregado que farto do mau ambiente e do pouco reconhecimento, desceu no porto e não voltou a embarcar. Prefiriu tentar a sorte como meseiro no bar do porto.
O caos no barco instalou-se porque todos queriam o seu lugar, que julgavam ser uma posição de muita vantagem. O comandante acabou por escolher aquele que lhe pareceu mais amistoso. Era um homem que lhe dispensava muitas atenções, mantinha os seus sapatos engraxados e nunca se esquecia do seu pãozinho no pequeno-almoço.
Orgulhoso da posição que ocupava e sentindo-se apoiado pelo seu comandante o novo encarregado não poupava em tirania para obter os resultados que o seu amo lhe ditava. Ficou muito sozinho no barco, mas o que é que isso importava se era um « homem importante ».
Fartos os marinheiros começaram a organizar-se. Uns contactaram os familiares para lhes arranjarem outras ocupações, outros usaram velhas amizades para encontrar posto noutros barcos. E aos poucos iam saindo. O comandante ficava contente porque sobrava mais dinheiro para exibir ao seu rei. Mas o trabalho acumulava.
O encarregado começava o dia a berrar e terminava a vomitar. Mas era um « homem importante ».
Os marinheiros adoeciam de exaustão. Um a um, iam desistindo: aquele tinha deixado de ser o seu barco. Aquele barco de que antes se orgulhavam deixou de existir.
O rei resolve fazer a sua viagem de férias naquele barco que tanto orgulho lhe dava e que tão bem dirigido estava pelo seu comandante estrela.
No primeiro dia, apresentou-se no convés e cumprimentou os seus marinheiros. Olhou-os e pensou « o mar é mesmo duro ». Os seus marinheiros mostravam os cabelos brancos, os corpos emagrecidos e olheiras gigantes. O rei achou estranho tão poucos marinheiros terem subido ao convés para o receber, mas o comandante explicou que estavam quase todos ocupados com as tarefas para iniciar tão maravilhosa viagem.
A viagem iniciou-se. Como os marinheiros não davam conta de tanto trabalho, o comandante teve de abdicar do seu descanso para vir ajudar nas tarefas. Acabava por atrapalhar mais do que ajudar. Ele sabia a teoria, mas não tinha experiência nenhuma. E como tinha medo de perder autoridade nunca aceitava correções, permitindo-se mesmo dar ordens aos marinheiros sobre essas mesmas tarefas tantos anos executadas por eles com eficiência.
Não passou muito tempo até que o rei começou a questionar o atraso no serviço das refeições, a limpeza dos aposentos, a falta de manutenção dos convés, etc... O comandante sempre bem-falante ia contornando a questão.
Um dia estavam em alto mar, a mais de uma semana de encontrar terra novamento, quando o stock de àgua se limitou a um barril. O comandante ficou fulo. Quis exigir responsabilidades. Ninguém se acusava. A àgua não ia dar para todos até ao fim da viagem.
O rei ficou a saber da situação ao ouvir os rumores no porão. Saiu furioso à procura do comandante, que no convés gritava ao novo encarregado pela situação.
« Comandante, o que é que tem a dizer acerca desta situação ? » grugiu o rei.
« Alteza, não se preocupe que eu vou encontrar quem se esqueceu de abastecer o barco. »
« Pois muito bem, comandante. E quando o encontrar ? Ele vai milagrosamente colocar àgua no barco ? » ironizou o rei.
« Ah ! Humm ! Eh ! » pela primeira vez o bem-falante comandante não sabia como responder.
« Quando o encontrar, veja se dedica algum tempo a tentar encontrar soluções. »
O comandante estava possesso. O encarregado acabou por pagar o preço dessa frustação. Os marinheiros recolheram os efeitos dessa irritação.
Enquanto o comandante gritava e ameaçava, o rei começou a conversar com os marinheiros numa tentativa de descobrir o que se passava. A sua atitude de proximidade aliada à revolta acumulada deu frutos. Os marinheiros começaram a falar. Num par de horas o rei ficou a saber que a pessoa que se responsabilizava pelas compras em terra se tinha ido embora insatisfeito com o trabalho e que não foi substituido.
Num par de dias, o rei percebeu a origem de tantas poupanças e o tamanho da revolta que ali se cozinhava, dentro do seu barco estrela.
Resolveu esperar e ver como é que o comandante resolvia a questão.
O comandante tinha mandado racionar a àgua e proibiu os banhos com a mesma. Mas, o racionamento estava a ser feito de forma desporpocionada, dando vantagens ao comandante e ao rei. O rei, para garantir que chegavam vivos a terra resolveu intervir. Chamou todos ao convés e definiu turnos entre os marinheiros para garantir um racionamento mais justo. O comandante foi despedido.
Mas a vida a bordo daquele barco nunca mais foi a mesma, o barco tinha perdido o brilho de outros tempos.