O direito ao DESCANSO quando se vive numa propriedade horizontal
"Deita-se confortavelmente na sua cama… e não consegue adormecer com o barulho da máquina de lavar roupa, da televisão, da música e do arrastar de objetos que vem da casa do vizinho de cima." - in LDC
Hoje resolvi abrir um desses e-mails de marketing digital: trata-se de publicidade a uma empresa de administração de condomínios e o assunto abordado no texto veio diretamente ao encontro dos meus interesses atuais (porque será!?): o descanso quando se vive num bloco de apartamentos. Tendo em conta que a maioria da população em países do hemisfério norte, como é o caso de Portugal, vive em "gaiolas" a que chamam apartamentos, como eu, acredito que o assunto interessa a mais de um.
Com o crescimento do capitalismo enraizou-se a ideia da meritocracia de uma forma errada; isso ocorre sempre que se tenta simplificar conceitos complexos. Pelo que posso perceber no contacto com as pessoas, de uma forma geral, elas acham que o resultado só depende do esforço (estão erradas, mas isso fica para outras discussões). Assim, convencem-se de que precisam focar apenas em trabalho para alcançar algo, que muitas vezes nem elas sabem o que é, e ignoraram tudo o resto. Esse "tudo o resto" vai desde os tempos de ócio e de convívio, até à supressão dos tempos essenciais à nossa existência: tempo de dormir...
E, como todo Bom Ser Humano: "se eu não posso dormir, mais ninguém o fará, porque eu sou a medida do outro". Obviamente estou a ser irónica, mas quem já não ouviu a repetição exaustiva de frases como, por exemplo: "eu também apanhei quando era pequeno e estou aqui" ou "eu também estive doente e não faltei um dia" ou ainda "se até eu consigo, não entendo o porquê dele não conseguir", são pérolas do nosso "síndrome de Deus", quando nos colocamos como medida para os outros, esquecendo que cada um de nós tem as suas particularidades. Isso é motivo de muitas discussões por falta de empatia.
Essa falta de empatia está na raiz do problema que iniciou este texto e é especialmente visível quando vivemos à distância de uma fina parede, um dos outros.
"O sono não serve só para descansar. É muito mais importante do que isso e pode até ser capaz de prevenir e controlar o aparecimento ou agravamento de doenças. Tal como a alimentação ou exercício físico, o sono deve ser considerado um pilar de saúde." - in Lusíadas.pt.
Foram feitos estudos ao longo de décadas que corroboram a citação acima, mas que continuam a ser ignorados pela maioria, principalmente pelos adeptos da meritocracia que acham que dormir é para preguiçosos. O número de pessoas convencidas dessa premissa é enorme, por isso a probabilidade de uma delas ser seu vizinho é grande. Eu sou uma dessas azaradas de alguns meses para cá.
Todos os dias nos cruzamos com condutores ensonados, o que nos coloca em perigo a todos. Todos os dias lidamos com profissionais que não descansaram e por esse motivo não produzem tanto como poderiam. Todos os dias vemos pessoas doentes que poderiam melhorar se a sua higiene do sono fosse corrigida. Todos os dias saem para rua pessoas sem dormir com os níveis de ansiedade descontrolados e que ao mínimo deslize se alteram, se enervam e se tornam agressivas. Todos esses comportamentos se explicam pela inibição do período de descanso? Não, claro que não. Não é tão simples. Contudo, é inegável que a falta de respeito por este direito fundamental é responsável por muitos dos problemas descritos, como comprovam diversos estudos e como nós mesmos poderemos facilmente comprovar (quem tem condições para isso) afastando-nos dos nossos apartamentos barulhentos e ir dormir um par de meses a um local sossegado. A diferença na nossa energia vital é sentido num par de semanas.
Sabendo que a falta, de boas noites de sono, tem um impacto tão grande na saúde pública, o direito ao descanso foi previsto na lei; pode-se consultar acórdãos do STJ como este ou o Regulamento Geral do Ruído aqui. Porém, uma coisa é o que se escreve, outra é como se age!
O problema começa com a má construção sem insonorização apropriada, passa pela falta de educação e civilidade das pessoas que insistem em viver nesses espaços como se estivessem à solta na selva, mas agrava-se com a falta de uma resposta adequada da justiça, que devia ter um papel dissuasor, mas que não o cumpre corretamente.
Em primeiro lugar, comecemos pela lei que permite às distribuidoras de eletricidade a venda de tarifários bi-horários. Essa ilusão de que pouparemos uns trocos usando as máquinas durante a noite, faz com que as noites nos prédios sejam verdadeiros Concertos de Máquinas de lavar roupa e loiça, perturbando o sono alheio. Isso devia ser repensado, porque a maioria não faz as contas para perceber que o que pensa poupar durante a noite não cobre o que paga durante o dia. (Se a lei tem este tipo de exceções, porque não aproveitar?, devem pensar aqueles que não têm capacidade de autocontrole para se impedirem de perturbar o descanso alheio.)
Em segundo lugar, falemos da falta de campanhas locais (câmaras, juntas de freguesia, centros de saúde, escolas, etc...) para educar a população a respeitar o espaço alheio. Ninguém gostaria de ver entrar um vizinho pela porta dentro sem ser convidado, mas acha-se no direito de invadir o espaço do outro com o barulho produzido por si.
Em terceiro lugar, temos que falar nas administrações de condomínio. Nada as obriga a intervir em caso de conflito, contudo elas são eleitas para gerir o espaço comum, então, assim que o barulho de alguém ultrapassa as paredes da sua propriedade e invade casa alheia, seria de bom-tom usar esse papel de autoridade, que o cargo lhes confere, para mediar o conflito, ou simplesmente informar o condómino mais barulhento sobre as suas obrigações como vizinho. Isso evitaria muitas discussões desnecessárias, tendo em conta que a maioria desconhece a lei e não foi corretamente educada para o Respeito. Não devíamos estar preocupados em educar adultos, mas por algo os humanos nascem com a capacidade de Aprender e preservam-na a vida toda!
Em quarto lugar, para aqueles vizinhos que apesar de informados de todas as formas possíveis continuam a achar que vivem num galinheiro e que não precisa respeitar e sim competir para ver quem cacareja mais alto, a lei devia ter ferramentas que realmente possam ser aplicadas antes que a pessoa inibida de dormir sofra consequências irreversíveis. Mas não tem! A lei prevê que o barulho deva diminuir após as 20h (visto que as obras devem cessar neste horário, e entende-se que estas sejam a fonte de maior barulho num prédio). Contudo, isto é um exercício de interpretação longe da capacidade da maioria que vive agarrada à literalidade. No Regulamento Geral do Ruído diz que os barulhos devem parar entre as 23h e as 7h, então, a maioria menos esclarecida acha que só tem de parar de fazer muito barulho a partir das 23h, porém é a essa hora que liga as máquinas. Ou seja, quem tem de dormir mais horas, como as crianças, ou quem tem de se levantar mais cedo fica condenado a não ver respeitado o direito fundamental ao descanso.
Em quinto lugar, em caso de barulho da vizinhança devemos chamar a polícia para vir ao prédio fazer cessar a fonte de barulho e talvez multar. Mas o mais importante é vir educar os adultos que não receberam, ou não entenderam, o princípio básico do Respeito ao outro durante o processo de crescimento. Só que, por um lado a polícia devia estar ocupada com outras coisas que não fosse dar puxões de orelhas em adultos mal-educados, por outro eles não podem agir sem comprovar a fonte de barulho e isso muitas vezes implica colocar um polícia a viver connosco, o que não é exequível.
Em sexto lugar, quando a ação da polícia é insuficiente, como na maioria dos casos, temos de recorrer a um advogado que nos vai cobrar várias horas de trabalho para enviar uma carta registada com a esperança de que o visado não seja muito esclarecido legalmente e se intimide com a receção da mesma. O que levanta outra questão: a justiça não é para todos, porque é exuberantemente cara o que a deixa fora do alcance da maioria.
Em sétimo lugar, quando tudo falhou temos de recorrer aos tribunais, o que implica ter mais um camião de dinheiro e uma paciência resistente para esperar que daí saia alguma possível solução (todos os advogados que consultei me avisaram que é provável que ganhe o caso, mas que depois é possível que tenha dificuldades para aplicar a sentença, afinal não posso ter um polícia a viver comigo todas as noites, a não ser que queira casar com um!!! O que deixa o papel da justiça num lugar estranho e pouco conveniente para o seu principal papel: dissuadir para evitar repetições e assegurar a paz e segurança da população que serve).
Em resumo, a privação de sono, ou a falta de qualidade de uma noite de sono, prejudica gravemente indivíduos e por consequência a sociedade, que é feita do seu conjunto, mas o problema é tratado sem a importância necessária. Todas as ferramentas colocadas ao dispor, do cidadão afetado por esta maleita, são imprecisas e falhas. Temos de começar por educar, para isso algumas campanhas do Ministério da Educação e da Saúde, assim como das autoridades locais, seriam bem-vindas. O dinheiro investido nesta ação não representaria nem metade do investido em espetáculos como o da TAP ou das JMJ e teria um retorno em qualidade de vida, na produtividade e poupança do SNS em tratamentos de doenças agravadas pela má qualidade do sono.
A todos os cidadãos que vivem em regime de copropriedade horizontal: parem uns minutinhos da vossa vida e olhem para a vossa casa e rotina. Reflitam: estarei a fazer todo o possível para não ser uma fonte de problemas para os meus vizinhos? Tenho o cuidado de não bater portas e janelas? Coloquei batedores nas portas e gavetas para que elas não produzam o barulho do impacto? Coloquei borrachas ou esponjas nas cadeiras e móveis para que não produzam o barulho de arrastamento de cada vez que nos sentamos para comer na mesa? Uso chinelos dentro de casa? Limito as atividades mais barulhentas até às 20h? Ou, tenho em atenção que o meu vizinho trabalha por turnos e eu posso limitar o barulho durante os seus períodos de descanso? Deixo as limpezas, aquelas com aspirador, por exemplo, para períodos que não interfiram com o descanso da minha vizinhança? As minhas festas são feitas em jardins ou espaços próprios para não incomodar? Aviso os meus vizinhos quando trago convidados? Peço aos meus convidados para terem cuidado com barulhos nas escadas e elevadores? Etc. São pequenos gestos, mas fazem muita diferença e evitam muitas chatices, tanto para aquele que não pode descansar, como para aquele que se verá arrastado para o Tribunal e que terá de penar as consequências. Deixemos os Tribunais para outras lides!
Desejo-vos a todos Bons Vizinhos!
PS: Como afirma Capelo e Sousa: "mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses." Tenhamos isto em conta nesta crise atual de Empatia e Credibilidade.