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Aerdna no Mundo?

A definição da palavra "mundo", não é restrita. A minha preferida, engloba os vàrios conjuntos de realidades concretas e imaginadas. Aqui veremos o mundo pela escrita de Aerdna.

Aerdna no Mundo?

A definição da palavra "mundo", não é restrita. A minha preferida, engloba os vàrios conjuntos de realidades concretas e imaginadas. Aqui veremos o mundo pela escrita de Aerdna.

Lembrança de uma vida importante que passou!

“Desconcertante é que tão grande tristeza caiba dentro de tão pequeno peito.

Às vezes morre-se tanto,

E tão cedo.” 

Al Berto

A melhor moldura que o pai pode ter as suas filhas

 

A melhor moldura que um pai pode ter, as suas filhas!

 

 

Faz hoje um ano que por volta do meio da tarde, faleceu o Senhor do Gato, o Bernardo, o João.

 

Para mim, simplesmente Pai.

 

O meu pai foi um homem muito importante.

 

Nascido no seio de uma família pobre da aldeia de Angeja, no ano de 1952 teve sete irmãos.

A vida não era fácil para ninguém, e não foi excepção para esta família. E ensinaram-no a trabalhar, a garantir forma de se sustentar, mas faltaram demonstrações de amor.

A educação não foi de forma alguma um investimento do qual ele tenha usufruído. Fez a quarta classe e orgulhava-se de aos 50 anos ainda saber de cor todos os reis e rios portugueses. Mas faltava-lhe muito para que se sentisse à vontade, num ambiente mais polido.

Falar com ele era reviver a história, gostava e tinha-a na memória.

A sua memória era tão boa que conhecia a árvore genealógica de praticamente toda a aldeia e arredores.

Ainda hoje quando alguém me tenta explicar “de quem se trata” e começa:

- Sabes! É filho do … que casou com a … cujo pai esteve na...e a sogra foi a …

Eu lembro-me inevitavelmente do meu pai.

Era uma enciclopédia de ditos populares e de piadas (básicas para mim, mas para ele hilariantes). Fica a pena de nunca ter tirado tempo para registar as coisas que dizia.

Contam que na altura da tropa foi para a banda do exército para fugir à guerra colonial. Dizem-no de uma forma depreciativa. Eu acho que terá sido uma atitude muito inteligente, afinal a guerra não era dele.

Mas acredito que não foi esse o motivo. Eu acredito que foi por amor à música. Não sabia demonstrar mas era um homem sensível que encontrou na banda um espaço de identificação e amizade. Tocou a maior parte da sua vida na Banda Filarmónica de Angeja e foi sócio até ao final.

Foi com emoção que na cerimónia fúnebre vimos os seus companheiros prestar a última homenagem.

 

Na aldeia era conhecido pelo apelido de família: “Bernardo”. Este devia-se ao fato de que a mãe tinha sido ama-de-leite de um menino chamado Bernardo. E quando era referida, as pessoas referiam-se a ela como a Aurora do Bernardo. Daí a o nome se estender à família foi uma questão de boca a boca.

O João “Bernardo” adorava crianças. Mas tinha pouco jeito.

Adorava e fazia muito bem a imitação de um gato a miar quando via um miúdo. Na verdade da forma como o fazia assustava mas não era de todo a sua intenção e os miúdos acabavam por perceber. E este gesto era tão seu, que um miúdo da vizinhança acabou por o apelidar de “Homem do Gato” e a coisa pegou.

A opinião na comunidade Angejense era unânime: era bom homem e rapaz trabalhador. E a verdade é que viveu para trabalhar. Fê-lo dos nove aos cinquenta e seis anos.

 

Ele amou e foi amado. Mas nunca teve muito jeito para o demonstrar.

Casou-se por amor. E apesar de separado amou até ao fim. O problema? O problema é que a única forma que conhecia para demonstrar que amava era trabalhar e não foi suficiente.

As mulheres tiveram muita importância na sua vida e viveu rodeado delas, apesar da visível timidez. A mãe, a minha “vò Rora” foi a sua maior perda. As irmãs o seu apoio mais imediato.

Compartiu casa praticamente toda a vida com mais 4 mulheres: a esposa, as duas filhas e a sogra. Uma equação nem sempre feliz e a minha mãe, nunca deixou de lhe cobrar a falta de privacidade do casal.

 

O seu maior orgulho foi as duas filhas. E algo de amor aprendeu ao longo da vida, porque nós sentíamo-lo. Foi sempre um homem de gostos simples, mas nunca nos “cortou as pernas” a alguma coisa que quiséssemos fazer ou experimentar.

Era desprendido do dinheiro, mas fazia questão que nós tivéssemos o melhor que fosse possível. Educou-nos para sermos pessoas de bem e para que corrêssemos atrás do que nos fizesse feliz. E foi com orgulho que o viu acontecer.

Não era homem para chorar, mas a emoção brotava-lhe na forma de silêncios cheios de significado. Quem o conhecia, entendia.

 

Um acidente, uma vida de maus hábitos alimentares, o tabaco e o álcool empurram-no para a reforma. Momento que tanto tinha ansiado, na sua vida de trabalho e que acaba por ser a sua sentencia.

Os dias passados nas salas dos cafés da terra, sem movimento e regados a tabaco e álcool, acabaram para contribuir para um cancro do esófago.

É uma triste forma de se acabar a vida. Praticamente morre-se de fome e o tumor vai crescendo, crescendo até invadir os órgãos anexos e ditar o instante final.

Mais triste foi ver como ele se apercebia que toda a vida tinha contribuído para um sistema que nada ia fazer para o salvar.

 

Triste, morreu numa qualquer cama de hospital, desumana e fria. Para onde eu o enviei de ambulância na tentativa de o salvar. A última pessoa conhecida que com ele se cruzou ficou com a imagem de um homem só num corredor de Hospital com as lágrimas nos olhos. Ainda hoje penso que teria sido melhor deixá-lo em casa junto de nós. Mas eu não sabia que era o fim.

Tive sorte, o último fim-de-semana foi passado em minha casa. Usufruímos da companhia uns dos outros. Esteve feliz e leve.

 

O neto, o único que ainda conheceu, quando vê Sírius nos céus identifica como o sítio para onde viajou o avô e que não pode voltar, por ser muito longe. E assim mata a saudade do avô João.

A minha saudade vai-se consumindo no emaranhado de lembranças que o fazem ainda existir. Sou demasiado parecida para sentir que me falta.

Sinto-o de cada vez que me entusiasmo e a voz sai mais alta, na minha mania de opinar por tudo até pelo que não me pedem, pela minha forma de tentar ser discreta, pela minha implicância com espaços com demasiadas pessoas, e principalmente por ser assim como sou e não me importar o que outros pensem.

Ele não foi um homem perfeito, e também nunca o tentou ser. A sua vida foi dedicada ao trabalho e a não faltar a quem realmente amava. Uns talvez achem que não esteve à altura, eu estou orgulhosa porque o tentou sem nunca se trair.

 

Fica um pequeno retrato deste homem tão importante para a pessoa que hoje sou. A minha irmã provavelmente dirá o mesmo. Um dia eu conto a história deste homem, cuja morte a ignorância talhou.

 

Que descanses em paz Pai, que por cá o teu legado será lembrado.

 

A pequena homenagem que os amigos da terra te dedicaram:

 

 

 

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