O direito à propriedade e a água...
As coisas mudam de forma estratégica e nós rapidamente nos habituamos ao conforto que nos é oferecido, sem discutir o preço que nos será cobrado. Segundo os historiadores sempre foi assim, desde que trocamos a procura do alimento natural pelo alimento cultivado, o que nos poupava uma série de viagens mas, nos tornou escravos da terra.
Agora o mesmo está a acontecer com a água. Até há umas décadas atrás, a água era um bem comum a todos e ninguém pensava muito nisso. Tínhamos rios, riachos, fontes por todo o lado e podíamos consumir o que fosse necessário. Depois começamos a canalizar, e os impostos eram usados para a construção das infra-estruturas e manutenção desse bem comum. Hoje pagamos esse bem de várias formas possíveis e nem nos damos conta que um bem essencial a todos está a gerar dinheiro e poder a uns poucos. As fontes de água que podiam ser facilmente encontradas em praticamente todas as cidades, vilas e aldeias foram fechadas ou inutilizadas com a popular placa "imprópria para consumo".
O consumo de água que antes era um processo natural, hoje é caríssimo e um grande "destruidor" do meio ambiente. A água que antes colhíamos com as mãos, com folhas ou usando cântaros de barro vezes sem conta, hoje é vendida em garrafas de plástico que se acumulam em lixeiras e oceanos, é transportada em camiões, navios, aviões que poluem o ar com gases tóxicos, etc... O que era simples e natural, transformou-se em confortável e letal. Quantos de nós se apercebeu da mudança? Poucos, muito poucos. Se nos tivéssemos apercebido, não teríamos permitido a privatização desse bem comum e necessário a todos. E quando digo necessário a todos, incluo a todos: humanos, animais, plantas.
O mundo cada vez mais conectado, não quer discutir assuntos sérios de interesse à sobrevivência quando pode discutir a cor de um vestido ou qual equipa desportiva que teve melhor desempenho. O velho truque político de dar ao povo "pão e circo" sempre funcionou e apesar da evolução, nada tem mudado nesse sentido. Como sabemos os políticos, de uma forma geral, estão mais perto dos interesses corporativos que geram capital do que dos povos e o resultado foi a gradual privatização de um bem comum a todos nós: a água é hoje um bem raro e caro, com tendência a piorar.
O que diz as Nações Unidas é que a água é um direito de todos, mas na prática isso deixou de ser uma realidade. Para a Nestlé, a água é um alimento como outro qualquer e por isso deve ter um preço. Apesar de ninguém tomar banho em papas, com este argumento e fazendo acreditar que poderia corrigir a desigualdade na distribuição, esta corporação foi convencendo, governo por governo, a ceder direitos de exploração sobre este recurso a custos de produção irrisórios, como mostra este extracto de um documentário feito no Michigan (USA).
Os factos mostram que depois de duas décadas de exploração e lucros abismais, o problema da distribuição de água não foi resolvido por eles: os caudais estão cada vez mais escassos (apesar de culparem o aquecimento global como causa única, a verdade é que as causas são plurais e a exploração desenfreada com certeza está entre elas), o engarrafamento produz lixo impossível de gerir e o transporte e distribuição da água, que antes era um processo natural, é agora fonte de poluição em várias frentes.
Como simples cidadã é difícil fugir ao sistema. Porém tentar priorizar a água da torneira, usar garrafas reutilizáveis para quando saímos de casa, podem ser pequenas acções que somadas, pelo menos, diminuirão o lixo produzido e com o tempo talvez possam reduzir a necessidade de transportar água de um lado para outro, diminuindo o impacto da poluição gerada no processo.
Mas como cidadãos podemos exigir mais dos governos nacionais, no que toca a políticas de gestão destes recursos naturais. Deixo aqui um link para que saibam como funciona o parlamento e as propostas de lei, porque conhecendo o sistema podemos intervir. Quase sempre a iniciativa popular começa com a recolha das assinaturas necessárias para que o assunto possa ser discutido em plenário.
"Também grupos de cidadãos eleitores podem exercer o direito de iniciativa legislativa junto da Assembleia da República, bem como participar no procedimento legislativo a que derem origem." - no site da Assembleia da República
Podemos até tentar mudanças em termos continentais, junto das entidades europeias. É verdade que é mais fácil a uma grande corporação fazer-se ouvir. porque move os meios necessários para isso, contudo como cidadãos isso não é impossível. Torna-se mais complicado, porque temos de mobilizar mais meios e pessoas diferentes num objectivo comum. O que pode ser uma das razões pelas quais deixamos que façam o que querem, como querem, quando querem. E depois apenas nos queixamos que a culpa é deles, sem recordar que fomos preguiçosos e não fizemos nada (a não ser usufruir do conforto, tal como uma criança se agarra ao chupa-chupa para estar entretida e calada sem chatear os adultos).
"Quem pode iniciar uma petição?
- qualquer cidadão da UE
- qualquer pessoa que viva num país da UE
- qualquer empresa, organização ou associação com sede num país da UE
A sua petição deve dizer respeito a um dos domínios de actividade da UE. Pode apresentar uma petição a título individual ou em nome de um grupo. Não é necessário um número mínimo de assinaturas."
Como podemos ver no vídeo acima, a luta é desleal, mas não valerá a pena tentar que pelo menos haja uma campanha de consciencialização?
Não vale a pena reflectir sobre o assunto?
Não vale a pena repensar a forma como organizamos a vida empresarial?
Podemos deixar crescer tanto as empresas, que elas passem a ter mais peso que os próprios Estados? Esta é uma pergunta que já foi feita na altura da Grande Recessão (1929), há pouco tempo, na altura da crise do crédito bancário de 2008, voltou a soar e agora estamos à espera que se volte a repetir para continuarmos a queixar-nos. Sem fazer mudanças nenhumas, as empresas continuarão a ser maiores que os próprios Estados e a exercer poder sobre eles, ao ponto de serem elas que desenhem o modelo económico e usem os bens comuns para manutenção do seu poder e lucro. Trocamos os Reis por corporações, mudamos o nome e a forma mas o resultado continua a ser o mesmo: escravos de um sistema que engordamos sem nos apercebermos.
O facto é que tudo o que precisamos, se encontra hoje à distância de um supermercado e isso faz-nos esquecer olhar para os mecanismos ocultos que os alimentam. Principalmente, esquecemo-nos de que tudo o que usamos provém da natureza. Tudo. Até o aviãozinho onde nos deslocamos muito felizes, é na origem apenas "rochas de ferro" e "líquido negro" tirado às entranhas da terra. Devemos ser mais atentos com os recursos naturais que nos permitem viver, principalmente com os recursos essenciais à vida como o é o caso da água.
Por favor, pensemos nisso todos juntos e os que poderem e tiverem recursos unam-se, para que as instituições que nos gerem, pelo menos, o discutam. Numa altura em que a preservação do meio ambiente está na ordem do dia, não deixemos que a discussão só sirva para nos limitarem liberdades e nos venderem substitutos supostamente mais ecológicos. Façamos com que ela tenha um objectivo nobre e sirva com justiça aos reais interesses da humanidade.
Ouro pode ser útil apenas para alguns, mas a verdade é que a água é necessária a todos, do o Rei ao mendigo.
Este texto é resultado de uma conversa com o meu filho sobre a importância da água, o nosso recurso vital. Nós não cuidamos deste recurso, nem para nós, mas é necessário consciencializar as novas gerações de que é preciso cuidar dele. Não só evitando desperdícios, mas fazendo parte dos mecanismos de gestão, para que não falte a ninguém no futuro.