Serão assim tão úteis os passes sanitários e vacinais no combate à pandemia? Ou são apenas ferramentas políticas?
Depois das palavras cuidadosamente escolhidas pelo Presidente Francês, para dar a conhecer aos franceses a direcção das suas políticas no curto prazo, uma especialista epidemiológica deu uma entrevista à Europe1 e desmontou alguns mitos.
Como a situação que vivemos põe em causa a nossa saúde física e mental, creio que falta dar mais voz aos verdadeiros especialistas, para evitarmos cair cegamente nos jogos políticos que esta situação tem proporcionado.
Deixo-vos uma transcrição traduzida da entrevista da médica Alice Desbiolles à E1, no dia 05.01.2022, visto que só encontrei a versão original em francês sem legendas.
“DMITRI – A vossa convidada é uma epidemiologista e médica de saúde pública.
SONIA MABROUK – Benvinda à EUROPE 1 e bom dia Alice Desbiolles.
ALICE DESBIOLLES – Bom dia.
SM – Obrigada por estar aqui, Dmitri vem de enunciar médica de saúde pública, epidemiologista e você adicionou (eu quero salientar imediatamente antes de começar a nossa conversa) no perfil das suas contas nas redes sociais “sem conflitos de interesse”!
AD – Confirmo. Eu não tenho nenhum conflito de interesse a declarar.
SM – É esta, uma questão que nós devíamos, nós mesmos, os jornalistas, colocar todas as vezes que nós interrogamos um médico, um epidemiologista, como você esta manhã? É importante de o esclarecer, de o saber, para os nossos ouvintes?
AD – Não só é importante como normalmente é a lei. Todos os médicos que se exprimam sobre um assunto, devem justamente declarar os seus potenciais conflitos ligados a interesses sobre um produto, ou assuntos conectados ao que ele vai falar.
SM – Então a sua palavra é livre esta manhã, doutora. Nas colunas do Le Parisien, o Presidente Emmanuel Macron, assumiu complicar a vida dos não-vacinados e há essa frase que forçosamente faz reagir a médica que você é: “um irresponsável não é um cidadão”, falando dos não-vacinados. Para si, doutora, um não-vacinado é um cidadão? Ou um paciente à parte?
AD – Então, eu como médica não estou aqui para julgar os indivíduos, eu estou aqui para respeitar a sua escolha, seja ela qual for, penso que é importante lembrá-lo. Eu penso também que é mais que urgente parar de procurar culpados nesta crise, de verdade. Parar de procurar culpados entre os cidadãos: no começo eram aqueles que não respeitavam o confinamento, depois foram os que não respeitavam os gestos de barreira ou que usavam mal a máscara, depois foram as crianças, agora são os não-vacinados, e eu penso que amanhã serão as crianças não-vacinadas. Eu acho que é urgente parar com tudo isso e recordar que os únicos culpados são os factores que contribuíram à emergência e difusão deste agente infeccioso na escala planetária.
SM – Nós vamos falar largamente. Isto tem ar de vos magoar profundamente, esta manhã! Talvez mesmo na essência, naquilo que é a essência da sua missão, no seu compromisso.
AD – Efectivamente, eu penso que cada vez mais nós confundimos a medicina e a saúde pública com o domínio da moral e por isso procuramos o bom e o mau, os culpados, o bem e o mal. Na realidade a medicina e a saúde pública não deveriam entrar no campo da moral, nós deveríamos ficar somente no campo da ética. Ou, na verdade nós vamos tentar encontrar a melhor solução possível, aquela que fará menos estragos e para isso sair do campo da moral para ficar nesse da ética.
SM – No domínio da moral, doutora Alice Desbiolles, nós estamos no domínio da responsabilidade e podemos falar de uma forma de irresponsabilidade quando nós não estamos vacinados? Ou isso escandaliza-a e você diz que não é possível, hoje em dia, dizer isso.
AD – Eu tenho dificuldade a entender o argumento sanitário associado a isso. Nós sabemos bem que a vacinação, a vacina, protege bem contra as formas graves, mas não é maioritariamente eficaz contra a transmissão e contaminação. Nós podemos ver bem isso, está agora muito bem documentado na literatura científica, e todos podem experimentá-lo de forma empírica (experiência / observação). Nós podemos ver bem que com mais de 80%, quase 90%, da população vacinada nós estamos a várias centenas de milhar de contaminações depois do início do ano. Eu penso, uma vez mais, que é preciso parar esta estigmatização e respeitar a escolha dos indivíduos. O consentimento é uma noção muito forte na medicina.
SM – Muito importante o consentimento, porém há discursos que apontam apesar de tudo a responsabilidade dos não-vacinados. Alguns dizem mesmo que os não-vacinados devem assumir a sua escolha até ao fim e dizer se eles desejam ser reanimados, ou não, em caso de graves complicações. É especialmente um dos casos em debate proposto pelo professor Grimaldi. Que este debate seja feito ou surja, o que pensa você?
AD – Então, essa é a questão das directivas antecipadas e eu acho isso muito bem. Além disso, nós recomendamos a todas as pessoas de fazer essas directivas antecipadas, para saber se quer ou não ser reanimada em caso de acidente. Assim, eu penso que sim, é uma coisa boa que cada um faça as directivas antecipadas. Não é uma questão de status vacinal.
SM – Do seu ponto de vista doutora Alice Desbiolles, para que serve o passe vacinal? É essa a boa estratégia hoje em dia?
AD – Então, é uma boa questão. Eu não estou segura da sua eficácia. Uma vez mais, a vacinação, vamos dizer de massas, de toda a população, com doses sistemáticas repetidas às cegas não são a estratégia recomendada, inclusive pela OMS. O director da OMS, no fim do ano passado, lembrou uma vez mais que, não são doses repetidas na população em geral que vão fazer os países sair desta pandemia. Então, uma vez mais, o mais importante é focar a vacinação nas pessoas de risco, porque aí está bem documentado que a vacina protege as pessoas de risco de formas graves. Em contrapartida, nós vimos bem, que ela não limita necessariamente a transmissão e a contaminação. Então, mais uma vez, a utilidade, nós vamos dizer medical, epidemiológica e sanitária, deste passe vacinal é muito discutível a meu ver. Também pelos aspectos éticos e democráticos, que na minha opinião, deviam entrar na balança.
SM – Nós compreendemos o argumento científico que você apresenta. Eu não quero colocar perguntas que não tenho de fazer ou sejam indiscretas, mas você não faz parte, por exemplo, e eu não faço parte dessa população visada, isso quer dizer que nós não podemos ser vacinados? Eu não sei se é o vosso caso?
AD – Então...
SM – Mas, o que eu quero dizer é que você supõe...
AD – Eu estou vacinada. Mas eu penso, efectivamente e enfim, que há um consenso suficientemente forte sobre isso, de realmente focar a vacinação nas pessoas de risco e nas pessoas em contacto com elas, especialmente os cuidadores. Dentro do respeito do consentimento dos indivíduos (o consentimento livre e esclarecido é muito importante neste assunto). Insisto verdadeiramente o mais lógico e menos custoso em todos os sentidos sanitários, económicos, democráticos seria de focalizar a protecção nas pessoas de risco e pessoas em contacto com elas, dentro do respeito ao consentimento dos indivíduos.
SM – Nós vamos mais longe, doutora Alice Desbiolles, nesta entrevista. Na questão de saber, e é muito importante, se é a última vaga ou a última epidemia antes da próxima? Você desenvolveu uma tese particular, apoiada evidentemente na literatura científica, segundo você nós estamos condenados a viver com, ao lado de, estas epidemias infecciosas. E você propõe uma mudança radical de paradigma. Primeiramente diga-nos, é que nós entramos na Era das epidemias e das pandemias?
AD – Na realidade, isso é um relatório do IPBES, que é a plataforma intergovernamental científica e política da biodiversidade e sistemas e os serviços ecossistémicos, que foi publicado no final de 2020. O relatório chama-se “Escapar à Era das pandemias”, simplesmente. Já que ele é importante, lembrar que nós entramos realmente na Era das pandemias, nós podemos mesmo falar de pandemias de epidemias, cujo coronavírus, na realidade o SARSCOV2, é mais um. É importante recordar que depois de 1918, depois da Gripe Espanhola, nós conhecemos variadas pandemias sucessivas: a MERS, a SARS, o VIH, agora o SARSCOV2. Então efectivamente nós entramos naquilo que nós podemos chamar a Era das pandemias e os especialistas do IPBES insistem sobre a necessidade de enfrentar os factores de risco, de eclosão, de...
SM – Quais são esses factores?
AD – Eles são essencialmente as actividades humanas destrutivas como a desflorestação, o comércio de animais selvagens, a erosão e destruição da biodiversidade. Pois uma biodiversidade rica e variada protege os humanos do risco de pandemia, simplesmente por aquilo que chamamos “Efeito Diluição”, que faz com que os agentes patogénicos sejam diluídos numa grande quantidade e com uma grande variedade genética. Isso protege realmente os humanos do risco de emergência / eclosão. E também um outro enorme risco de pandemia é a produção industrial, que joga um papel de amplificador do agente patogénico, simplesmente porque os animais que estão nestas quintas industriais são na realidade clones ao nível genético. Então, assim que temos um agente infeccioso que acha a chave para contaminar um indivíduo, ele vai contaminar o resto da produção. Em seguida, quando isso acontecer, por exemplo, numa criação de porcos (há uma grande proximidade genética entre o humano e o porco, nós partilhamos quase 95% do nosso genoma em comum com o porco) então terá a via aberta para aceder ao ser humano. Depois num contexto de globalização, de hipermobilidade, terão uma difusão ultra rápida, à escala do planeta, em cidades que são cada vez mais densamente povoadas, com sistemas de saúde que são cada vez mais fragilizados e aí terão o cocktail perfeito para uma pandemia.
SM – Sejamos claros, doutora Alice Desbiolles, não se trata, esta manhã, de fazer apologia à redução do crescimento, mas de dizer que com uma mudança total de paradigma, da nossa forma de viver, de pensar (também) em relação ao nosso sistema económico, é possível escapar à Era das pandemias. Porém se continuamos como estamos nós não poderemos escapar. É isso?
AD – Em todo o caso é o que digo. Finalmente, é verdadeiamente a conclusão deste relatório do IPBES. Há ainda, e é bem conhecido, quando entramos numa Era de pandemias, e eu especifico: o impacto actual das pandemias que é 100 vezes superior ao custo estimado da sua prevenção (isso também é uma conclusão do IPBES). A OMS fez uma lista depois de 2018, é a lista “Blueprint” da OMS que podemos encontrar na internet, e que lista na realidade todas as patologias emergentes que convém vigiar por causa do seu forte potencial pandémico. Lá encontramos obviamente agora o SARSCOV2, mas também o ébola, o maburg, o zika. E há o que chamamos a Doença X, que é uma doença ainda desconhecida, mas que a OMS pontua como sendo uma doença, que um dia muito provavelmente surgirá, que será potencialmente muito grave, com um potencial pandémico maior.
SM – Mas, nós não podemos ser fatalistas e não podemos resignarmo-nos à impotência esta manhã. Há uma forma de escapar a esta Era das pandemias através daquilo que você disse, que é uma mudança profunda de paradigma e de hábitos. Doutora Desbiolles também há o que vivemos actualmente, a variante Omicron que circula de tal forma que há tantas contaminações. Mais de 271 000 casos confirmados em 24h. O que querem dizer estes números de contaminações publicados regularmente? É que eles têm um significado? O que nos dizem eles?
AD – Obrigada por fazer a pergunta, porque quando nós seguimos uma pandemia, ou mesmo uma política de saúde pública, é muito importante colocar a questão sobre os indicadores pertinentes. Realmente o número de contaminações não é um indicador pertinente. Mesmo o Dr. Fauci, conselheiro do Presidente americano para a gestão da crise, lembrou que é preciso parar de focar sobre estas contaminações que são alucinantes, e focar no número de entradas na reanimação e no número de formas graves. Esses são os indicadores que devem predominar. E mais uma vez, se continuamos a focalizar-nos nos indicadores que não são os correctos, nós alimentamos por um lado um clima demasiado angustiante e por outro não agiremos de forma certeira, e não poderemos sair...
SM – Quem são os promotores do medo, hoje em dia?
AD – Oh! Não! Escute, um sábio...
SM – Há alguns na sua profissão, também...
AD – Certamente. Mas eu não estou aqui para fazer a delação. Eu penso que há uma responsabilidade científica e política, efectivamente. E penso que é urgente, e nunca é tarde para corrigir, e por isso eu realmente imploro por uma mudança de paradigma no curto, médio e longo termo. É realmente a única solução se não nos queremos condenar a morrer lentamente, em Eras de confinamento crónico e de pandemias crónicas. Se de cada vez, como estamos a ver, nós tivermos uma resposta, que não é completamente desconectada do real mas... Eu pessoalmente acho que todas estas histórias de passe sanitário, de passe sanitário, de confinamento, de restrição e tudo isso, não é um vocábulo do campo lexical que muda...
SM – Doutora Alice Desbiolles, é que alguns são solicitantes, uma parte da população pede as restrições, quer queiramos ou não, quer você o aceite ou não. Não é esse o papel de um responsável político? E aqui nós não estamos mais no plano sanitário, mas a tentar proteger e a proteger-se de tais medidas.
AD – Claro. Mais mais uma vez, eu penso que há, nós vamos dizer, uma apropriação desse termo “protecção”, “responsabilidade”, que na realidade não é no bom sentido.
SM – Salvar vidas, não para demonizar a saúde. O passe vacinal é para salvar vidas?
AD – Não. Ninguém deseja... E eu sou médica, é óbvio que sou a primeira a querer salvar vidas e a não querer degradar a saúde dos indivíduos, mas eu penso que é preciso, uma vez mais, avaliar também as políticas públicas, avaliar os dispositivos que serão aplicados. E desculpem-me mas, se as medidas que propomos no final, se olhamos as coisas no global, fazem mais estragos que bem, eu não estou segura de que essa seja forçosamente a boa solução. Falamos de indicadores há pouco, os indicadores que são ligados ao COVID, que são importantes de seguir obviamente, especialmente o número de formas graves, mas também há todos os outros indicadores, especialmente sanitários que será a saúde mental, que será a saúde das crianças,...
SM – A saúde actualmente é simplesmente evitar o COVID? Vou fazer uma pergunta que vai parecer demasiado simples, mas o que é uma boa saúde? O que é estar de boa saúde?
AD – É uma pergunta muito boa. Se calhar poderia ter sido feita mais cedo, mas eu vou dar-lhe a definição da OMS. Não é uma má definição. É a definição da OMS: "a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Não se resume à ausência de doença ou ausência de intimidade." Portanto nós não podemos reduzir a saúde aos indicadores COVID ou à simples ausência de COVID. E é por isso que para fazer um bom monitoramento desta gestão de crise é importante ter os indicadores COVID, mas que estejam equilibrados com os outros indicadores sanitários: a saúde mental, a saúde dos menores que infelizmente é devastada, degradada...
SM – Você acciona o alarme! Nós falamos muito dos serviços de reanimação. Mas há também a pedopsiquiatria, onde há, por vezes, meses de espera para os menores em situação de muito grande fragilidade e nós falamos muito pouco.
AD – Claro! A reanimação não tem o monopólio da falta de camas, a reanimação não tem o monopólio da falta de pessoal e a reanimação não tem o monopólio do sofrimento, infelizmente. Quando digo isso, não quero de todo minimizar o impacto e a tragédia ligada ao COVID. Longe disso! Só quero lembrar que a saúde é algo de mais global e que o sofrimento e o desespero são partilhados por uma enorme parte da população, não por causa da COVID19 mas por causa da gestão desta crise, do confinamento, do fecho das escolas, da pobreza, da precariedade que explode na França, das desigualdades que explodem em França. E é isso também que deveria, junto com indicadores COVID, ser tidos em conta e colocados na balança. É apenas uma questão de equilíbrio.
SM – É tudo uma questão de equilíbrio. Muito obrigada doutora Alice Desbiolles. Epidemiologista, médica de saúde pública e sem conflitos de interesse. É uma lição importante e é sobre pedir, talvez nós o façamos regularmente a partir de agora ao receber médicos epidemiologistas. Obrigada!
AD – Obrigada a você!”